Conhecer para transformar-me
- Sandra Braik

- 25 de abr.
- 4 min de leitura

Começo esse texto frente à Cicero: “um espaço sem livros é como um corpo sem alma”. Olho para o quadro com esse dizer em minha parede e me tomo por uma inquietação: ele não está se referindo somente a livros, isso eu tenho certeza, mas a que ele está se referindo exatamente? Fico pensando nos inúmeros caminhos que meu cérebro toma, mas para responder meu próprio questionamento preciso fazer uma momentânea digressão.
Ninguém me disse que era leitora quando nasci. E, se ninguém me disse, como descobri? E, o que é ser leitora para mim?
Lamentavelmente na minha casa não houve, como na de muitos brasileiros, grande incentivo à leitura de livros, muito menos acesso à biblioteca quando mais jovem. Logo cedo aprendi a valorizar os esforços que meus pais fizeram, mediadores da partilha, para educar a mim e as minhas três irmãs. O meu entendimento mundano iniciou-se com um exemplo de dedicação, sacrifício e amor. Ler é perceber?
Quando descobri, pequena e sentada no banco de trás do carro dos meus pais espremida entre minhas irmãs, vagando pela Av. dos Bandeirantes, que as combinações de letras em um fundo tinham significado, percebi o quanto era gratificante querer saber o que estava redigido em tudo que via e a curiosidade do descobrir se tornou paixão. Ler é desvendar?
Na infância lia receitas nos inúmeros livros de culinária da minha mãe. O meu preferido, aquele grande de capa vinho e papel pólen, que exalava um cheiro de memória afetiva e tinha páginas marcadas por nossos dedos amanteigados. A bíblia gastronômica registrava grandes clássicos infantis como: bolinho de chuva, esfiha de carne e docinhos de leite em pó com parafina, escritos elegantemente com sua letra materna e itálica. Muitas vezes não entendia o traçado, entretanto o imenso amor por aquilo me fazia fingir compreender e ainda colava adesivos ao lado como uma marca que o texto fez em mim, mostrando para a “palavra-enigma” que ela era especial, pois teria que pedir ajuda à minha mãe para decifrá-la. Ler é experimentar sensações?
Cicero chamou minha atenção, mas vou pedir licença a ele mais um pouco. Empolgada com o que as palavras estavam começando a significar para mim não via a hora de ler os livros da escola – único momento em que eu os “tinha” -; lá me diziam que eu devia ler aqueles já escolhidos porque eu deveria tirar uma boa nota. A pedagogia imperativa distanciava-se do modo de ver a literatura de Campos de Queirós (2008), “[...] a literatura deve ser lida pelo prazer de ler” (p. 163). Ler não pode ser obrigar alguém a ler; pode?
Passei a minha adolescência considerando a leitura escolar como obrigatória e chata, pois infelizmente eu não entendia os livros escolhidos, eram difíceis. Se escrever é relatar a vivência específica de quem o faz, como outras pessoas que não vivenciaram o mesmo que o autor podem ter um entendimento similar do assunto? A consequência disso, em mim, foi a tola vergonha e o medo de não querer pegá-los de propósito para evitar a confirmação de que eu realmente não os entendia ou os vários significados que eu dava à obra não serviam de nada, pelo menos na escola. Ler é ter medo? E eu não queria ter medo, Cicero. Hooks (2013) pensava o professor como influenciador de vida e escolhas e foi o professor Max, de Ética e Cidadania, que me fez, com sua mediação cinematográfica da A outra história americana, ver “a leitura como um gesto de resistência” - como disse a professora Neide em uma de suas aulas - e foi o acaso da vida que me fez encontrar um exemplar de Os Sete, do André Vianco, em 1999 na livraria Siciliano para descobrir o prazer de ler.
“[...] quando alguém que não recebeu nada ao nascer se apodera dos livros, produzem-se quase sempre em sua história certos encontros, às vezes fugazes, que influenciaram seu destino: um amigo, um professor, um bibliotecário, um animador social que transmitiram sua paixão, legitimaram ou revelaram um gosto pela leitura, e também deram os meios materiais para que pudessem se apropriar desses bens até então inacessíveis.”
(Petit, 2013, p. 36)
Ler é inspirar-se através da subjetividade do outro? Ler é tomar consciência, é enxergar invisíveis. É fazer sentido naquilo que você mesmo constituiu como sentido. Não há resposta única, muito menos correta, mas talvez Cicero estivesse falando sobre sentidos.
Nos fazemos leitores enquanto vivemos, no processo transformacional que é o aprendizado.
“[...] a leitura pode ajudar as pessoas a se construírem, a se descobrirem, a se tornarem um pouco mais autoras de suas vidas, sujeitos de seus destinos, mesmo quando se encontram em contextos sociais desfavorecidos”.
(Petit, 2013, p.31)
A leitura faz com que percebamos várias formas de ver o mundo, em diferentes épocas. É vencer medos e preconceitos. É valorizar o tempo escasso que passamos em terra fazendo algo útil: aprendendo. E o mais bonito disso: aprendendo com os outros e muito mais com nós mesmos.
Quando aprendo deixo de ser um
Apreendo o desconhecido
Reflito com o outro eu
Habitante do processo incessante
De reencontrar o cerne de mim
Envolto por pensamentos tecidos
Na conclusão inconclusa







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